quinta-feira, 25 de março de 2010

Vida Virtual

Meu dedo tremia e encostava-se ao gatilho.

Minha mãe sempre falava para eu sair de casa. Sempre disse para eu largar os videogames, os RPGs (segundo ela, algo que me influenciava a passar para o lado do demônio), meus desenhos e todo o resto. Eu precisava interagir, como as pessoas normais da minha idade. Eu não era normal, então. Todas as pessoas que seguem um estilo de vida como o meu também não são normais, possuem algum distúrbio mental ou alguma deficiência desconhecida.

Interagir, disse ela. Sair para “ficar com gatinhas”. Exatamente, “ficar com gatinhas”, como os garotos da minha idade fazem. Olhem para mim, magro como um boi no sertão e espinhento como um cacto. Minha única possibilidade de “ficar com gatinhas” seria visitar um pet-shop. Eu interagia, na verdade, mas não da maneira como ela queria. Divertia-me em conversas com conhecidos estranhos, e divertidos desconhecidos. Coisas que você encontra na Internet, e em mais nenhum lugar.

Não desperdiçar a minha vida em frente ao PC também era um dos conselhos que ela me dava. Tão freqüente que, se fosse gravado em uma vitrola e repetido durante o dia inteiro, eu não sentiria a mínima diferença. Pois bem. Isso até que era verdade. Na vida real, não há a probabilidade de salvar seu progresso antes de um momento ruim. Você tem de enfrentar aquilo, por mais duro que seja.

Eu estava com o dedo no gatilho, e minha mãe me mandava dormir.

Pensava em me matar, é verdade. Que jovem nunca pensou em se matar, nunca se desiludiu o suficiente para enfiar a faca no próprio peito? Se há alguém assim, é tão burro para não saber ao menos sua própria identidade. Sua própria fraqueza. Tenho medo de me arrepender, como qualquer um, pois ao contrário dos videogames, a vida não dá nenhuma chance de você recomeçar.

Às vezes eu desejava ser normal, como minha mãe queria. Mas somente para ela parar de encher o meu saco.

Eu estava com o dedo no gatilho. Meu personagem, enfim, foi atingido na cabeça, e repentinamente a tela ficou preta. Esperei dez segundos, me concentrei e voltei ao jogo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Seta

Poucas pessoas conseguem admirar a beleza de uma cidade destruída pela guerra. Não é algo normal perceber isso, mas é ali que a essência da humanidade realmente se mostra, em sua crueldade pura. Os corpos estirados, em posições impossíveis para os vivos; o sangue que colore as pichações dos muros, os escombros que cobrem uma superfície antes limpa e, por que não, bela. É algo que nos faz refletir sobre a existência de um bem maior, e nos faz pensar em como a humanidade é podre.
Sim, todos nós somos podres de alguma maneira, mas há de se tirar alguma beleza disto. Os sentimentos fortes causados pela destruição e pela perda criam histórias interessantes e trágicas, como a de minha amiga Jasmine.
1
Conheci Jasmine há muito tempo atrás, quando ainda vivíamos na mais profunda paz. Eu era apenas o criado da família, é verdade, mas ela parecia não se importar com isso. Nós brincávamos dia e noite, jogando futebol e nos divertindo com os animais da fazenda. Apesar de ser uma garota, ela nunca se importara com bonecas ou maquiagens de tipo algum. Vivia apenas para se divertir, ali, em seu mundinho.
Lógico que ela também tinha seus deveres, como filha de pais ricos. Tocava violino muito bem, e sempre me dizia o quanto odiava aquilo. Esse ódio era apenas comparável ao que sentia pela escola.
Jasmine era levada por seu pai, todos os dias, para a escola mais cara da cidade. Ali ela tinha de usar saia e camisa social, além de levar livros de todos os tamanhos. Creio que parte do ódio dela pela escola vinha do meu deboche diário.
- Você está parecendo um pingüim!
- Ah, cale a boca. – ela dizia.
E, conforme crescia, odiava ainda mais os estudos. Ouvi dizer que tinham medo dela no colégio onde ela fez o Ensino Médio. Bem, são apenas boatos que nunca foram confirmados.
Crescemos juntos e nossos interesses foram mudando. Não quero dizer que comecei a me interessar por ela como mulher, até porque isso seria além da minha imaginação, e ela riria só de imaginar na hipótese. Éramos apenas grandes amigos e, quase literalmente, inseparáveis. Jasmine, porém, desenvolveu um estranho interesse pela música estrangeira, principalmente americana. Para uma garota que cresceu no meio de bois, vacas e ovelhas, seria mais comum ela se interessar por sertanejo. Claro, eu debochava dela por isso também.
Mas os meus novos interesses eram mais motivo de brincadeira do que os dela. Eu começara a escrever alguns poemas, de vários temas. Sempre que eu estava com um lápis e um papel em mãos, ela se aproximava com um sorriso terrível.
- Me deixa ver, Rico! – dizia ela, sacudindo meus braços com um vigor incontrolável. – Deixa, vai! Só um pouquinho!
Eu sempre caía naquela armadilha, que vinha sempre em conjunto com uma expressão que me dava dó. Quando ela estava em poder dos textos, porém, sua expressão voltava à debochada de sempre, e começava a ler tudo em voz alta, rindo.
Eu odiava aquilo, e odiava pra cacete. Mas sinto um pouco de saudades daquela época, pois a guerra chegou um pouco depois.
2
O pai de Jasmine andava agitado. Praticamente não parava em casa, alegando negócios na cidade, onde passava o dia inteiro. Só voltava na calada da noite. A mãe, Sra. Frida, também andava um pouco nervosa, mas acredito que fosse pela probabilidade de o marido ter uma amante na cidade, hipótese que nunca se confirmou. Pelo contrário, eu o via chegando todas as madrugadas com um sorriso acolhedor de quem realmente se sente bem em casa.
Quando as primeiras bombas vieram, não ficamos muito preocupados, pois não era muito provável que uma fazenda fosse atacada por motivos políticos ou de qualquer outra natureza. As coisas mudaram um pouco quando a cidade começou a ser destruída, bem debaixo dos nossos olhos.
Meus pais andavam com muito medo. Diziam que deus iria salvá-los, que ele nunca desaponta as pessoas de fé, mas eles sequer eram religiosos até a guerra começar. Sentia um pouco de pena deles, porque eu não estava muito preocupado.
Até que a guerra atingiu a minha vida de uma maneira incontrolável.
Jasmine me disse, mais tarde, o irmão dela voltara do exterior e trouxera notícias sobre a guerra para o pai. Ela parecia mesmo bem desequilibrada naquelas dias, como se algo terrível tivesse acontecido na família. Vivia deitada na cama, e quando saía de casa, me falava com medo.
Alguns dias depois, o medo dela se confirmou. Os pais foram assassinados, a sangue frio, dentro de casa. Lembro-me claramente da cena, embora tenha visto de longe: ela gritava, a plenos pulmões, que o irmão era um assassino, e exigia vingança.
Mal sabia eu que a própria Jasmine iria atrás de vingança.
3
O irmão deixara desenhada uma seta apontando para a cidade, segundo ela. A seta era totalmente pintada com sangue.
Ela começou, então, a seguir o irmão por diversas localidades: hotéis, bares, shows, eventos de todo tipo. Sempre seguindo as setas.
- Em todo lugar que eu chegava, sempre havia uma seta pintada com sangue fresco para seguir – disse ela. – Em todo lugar havia sangue fresco e alguma pessoa morta por aquele filho da puta.
Eu continuei vivendo na fazenda com meus pais. A guerra passou, e eu não ouvira muitas notícias mais sobre Jasmine, até que ela voltou à cidade. Era procurada pela polícia, suspeita de assassinatos e por posse ilegal de arma.
Muita coisa se passara, e a principal delas era a guerra. Por isso, a mídia fazia o possível para expor os inimigos da sociedade e tentar recriar um mundo justo depois de todo aquele horror.
Em meio à poeira, ela ressurgiu. Eu a encontrei, por uma obra do destino, mas não tive a coragem de me aproximar. Fiz, portanto, o que era mais seguro naquele momento – a segui.
Quase a perdi, mas encontrei-a a tempo em um hotel. Não parecia muito seguro. Ela se apoiava em uma cadeira de madeira, apontando a arma para a testa do recepcionista, que parecia desesperado. Os outros clientes do hotel haviam subido para seus apartamentos, temendo que algo pudesse acontecer.
- Onde está? – perguntou ela, em um tom impassível. Seus olhos não mostravam nenhum tipo de emoção, nem raiva nem ódio.
- O-o quê? – gaguejou o homem, desesperado.
- A seta, caralho. – ela disse. – Onde está a porra da seta?
- Eu não sei do que está falando, senhorita...
Escondi-me debaixo de uma janela, sem arriscar observar a cena. Jasmine continuava a gritar com o recepcionista, exigindo que lhe mostrassem a seta. Sem nenhuma resposta positiva, ela atirou. Levantei-me a tempo de ver o sangue jorrando da testa do pobre coitado.
Em um impulso, Jasmine levantou um dos tapetes e seu rosto se encheu de satisfação. Ela sussurrou para o vento:
- Oeste.
E saiu em disparada pelo portão. O barulho de sirene só se tornou claro alguns momentos depois.
Isso não importava. Jasmine tinha ido para oeste, e eu não vira nenhuma seta que indicasse para oeste. Ou melhor, eu não vira nenhuma seta.
Sua perseguição ao irmão imaginário durou mais algum tempo, até que ela foi presa e levada para o Hospital Psiquiátrico da capital. Lá, ela me contou todos os detalhes que eu ainda não sabia sobre sua história, mas ainda convicta em seu irmão.
Mais tarde, descobri que a mãe matara o pai de Jasmine. A mulher já estava completamente louca e convicta de que o marido tinha uma amante. Após matá-lo, ela atirou no próprio coração. Um suicídio realmente bem profundo.
Não entendo até hoje a repentina loucura de Jasmine e a invenção de um irmão. Nunca mais a vi. Escrevo agora minhas histórias fictícias, mas sinto que nada vai chegar aos pés daquela criada por minha grande amiga.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Confidente

Um show de deformidades e celebridades transitava na visão de Pedro, dia após dia.
Dentro daquelas quatro paredes, uma enorme quantidade de fantasmas assombrava-o com diversão. Mulheres, médicos, jovens, velhos que não tinham onde cair mortos. Todos visitavam Pedro, rindo, resmugando e gritando. Às vezes, até chorando.
Ele não era velho, mas parecia alguém que esperava a morte se apoderar de sua alma. Os olhos cansados não deixavam transparecer que, há muito tempo, ele podia ter sido feliz. Os ombros duros faziam-no parecido com Atlas, condenado a sustentar o peso do céu para a eternidade.
Pedro parecia, aos habitantes, ter uma vida normal, dentro de seus limites. Era também o maior confidente daqueles fantasmas.
Não era incomum que ele soubesse de todas as fofocas do lugar. Era o confidente perfeito, alguém que perdoava os pecados sem necessidade de ave-marias. De vez em quando, ao notar a omissão de fatos ou verificar a falsidade das informações a ele dadas, sua expressão parecia se tornar mais dura. Todos entendiam que era o sinal para deixá-lo em paz.
Tomas tinha muita consideração por Pedro. Respeitava-o, confidenciando-lhe seus maiores desejos e temores. Ser o futuro presidente dos Estados Unidos era um fardo para ele, e precisava ter seus momentos de desabafo. O que ele daria ao irmão, que sequer o visitava em sua mansão? Como ele não era casado, quem seria sua primeira-dama? Como poderiam elegê-lo, sendo um estrangeiro?
Outra confidente era Rita. A morte esquecera dela, e a velhinha estava naquela vizinhança há muito tempo. Diziam nos corredores que ela fora amante de Cristo em tempos remotos, e todo dia a questionam sobre a veracidade da informação. O resultado é sempre o mesmo: o curioso leva um peteleco na cabeça e um aviso:
- Não brinque com a vida dos outros!
Então todos concluíam que era verdade.
A Pedro, Rita dizia sentir falta do marido. Ele morrera alguns anos antes de ela se mudar para ali, e a velha senhora insistia em dizer que ele ainda falava-lhe à noite. Ao apagar das luzes, enquanto Rita repousava sobre o travesseiro, ouvia um suave “boa-noite” sussurrado através do vento fresco.
Como o mais novo da turma, Dinho apenas ouvia boatos sobre a calma e a tranqüilidade que Pedro passava aos velhos habitantes. Demorou ainda algum tempo para fazer a lista de coisas que iria confidenciar-lhe. Pensou muito e levou alguns petelecos para decidir o que dizer.
Demorou tanto para finalizar sua lista que Pedro não estava mais em seu lugar.
Desesperado com a falta do confidente, perguntou à mulher de branco que por ali passava se Pedro ainda residia no local.
- Ah, você pergunta da Estátua d’O Pensador? Foi dada a outro Sanatório. Este aqui terá outra estátua em breve.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Nervos de fumaça

Aquele tipo de morte me era estranha.
Primeiramente, eu não sabia como tinha morrido. Simplesmente apareci no meu quarto, deitado em minha cama, como faço todos os dias; as descobertas só vieram depois de algum tempo refletindo e assimilando a idéia. Tentei olhar para minhas mãos, mas ali só havia uma fumaça (portanto, disforme) que se movia ao meu comando.
A segunda coisa que descobri foi que eu podia tocar alguns objetos. Apenas alguns, porque eu tinha que fazer um esforço tremendo. Talvez no outro mundo tenha uma escola de Ioga, ou algo do tipo, para podermos nos concentrar melhor.
Depois disso, fiz uma coisa que me arrependi de ter feito.
“Mãe, você tá aí?” gritei, atravessando a porta do meu quarto.
Um prato se quebrou na cozinha, seguido por um grito agudo. Meu pai reclamou na sala, dizendo que minha mãe estava louca e que era para ela começar a superar.
Veja bem, eu nunca gostei muito do meu pai, mas aquilo já era demais. Eu tinha morrido, e ele não sentia absolutamente nada. Nenhum pesar, nenhuma lágrima escorrida, nenhum abatimento. O incrível é que não consegui ficar tão puto assim por isso. Depois de estar morto e acordar em casa em forma de fumaça, nada parecia normal para mim.
A propósito, eu também não fiquei desesperado demais por estar morto. Pode ser que, quando a gente morre, perde os nervos e os sentimentos. Estava indo bem naquela situação, até.
Acredito que a maior surpresa foi saber que minha mãe podia me ouvir. Provavelmente a única pessoa. Foi meio difícil conversar com ela no começo, mas aos poucos ela parou de quebrar pratos e tentou me convencer a seguir em frente.
“Você não pode ficar aqui, meu filho. Você precisa seguir em frente.” Dizia ela, geralmente parada em frente à secadora.
Eu não queria seguir em frente. Esse era o meu único desejo. Se ela pudesse entender minha expressão por trás da fumaça, saberia que minha cara era de desdém quando ela falava essas coisas.
“Não posso, mãe. Ainda tenho coisas a fazer aqui.”
Vaguei pela casa por algum tempo. Minha mãe parecia estar ficando louca, mas eu não queria ir embora. Quando, pela minha surpresa, minha namorada apareceu em minha casa.
Será que eu ainda podia chamá-la de namorada depois de morto? De qualquer forma, não parecia que minha mãe tinha conversado com ela, mas, quando ela chegou, as duas se sentaram juntas e tiveram um longo papo.
Pude ouvir soluços da sala. Não apareci lá para não causar um surto em minha mãe, que já estava com os nervos em frangalhos. Provavelmente ela estava pedindo para minha namorada me convencer a desistir de tudo.
Fiquei até surpreso quando ela apareceu em meu quarto, sem demonstrar qualquer medo.
“Você sabe que eu te amo. Você sempre soube. Agora preciso que você siga em frente, vá viver outra vida ou seja lá o que aconteça depois que você... deixa de existir nesse mundo. Saiba que” aqui ela começou a chorar. “você sempre vai existir pra mim, não importa o que aconteça.”
Eu sabia que ela logo encontraria um novo namorado e eu seria apenas uma lembrança. Aquelas palavras são ditas da boca para a fora na maioria dos casos, e provavelmente ela usaria alguém para curar a solidão e a dor de ter alguém querido debaixo da terra.
Mesmo assim, eu fiquei comovido. Se fumaças pudessem chorar, eu teria chorado.
Me esforcei para pegar uma caneta em minha escrivaninha. Ela logo notou que ela mexera por provável vontade própria, mas continuou sem sentir medo. Naquele momento, eu sabia o que escrever.
“Amo você. Não esqueça. Viva o que não vivi.”
Como morto, não consegui mentir. Eu não queria que ela me esquecesse, por mais que isso fosse fazê-la bem. Será que todos os mortos eram assim?
Será que todos conseguem seguir em frente só se tiverem uma demonstração de amor verdadeiro? Se sim, mal consigo imaginar a quantidade de almas vagando por aí.
Quanto a mim, não consegui sequer dar um abraço na pessoa que amava. Não tive tempo nem para casar, pelo amor dos céus.
E mesmo assim, segui para o desconhecido com o sentimento de um dever cumprido.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Crônica do Ódio

O mundo gira, gira... Gira como um carrossel macabro, derrubando montes de pessoas em acessos de fúria de seus cavalos indomáveis. Pisoteando corpos e mais corpos, deixando rastros de sangue a cada volta. Os corpos não são recolhidos, apenas esquecidos e integrados à paisagem que muda, silenciosa e mortalmente...
Quando eu era apenas uma criança, os cavalos pareciam dóceis. Quando não se sabe das verdades da vida, tudo é inocente. O sorriso irônico, a felicidade falsa. A organização mentirosa. Apenas quando cresci um pouco descobri a verdade.
Cresci, sim, a muito custo. Na sujeira do orfanato, nos camuflávamos. Era até feliz, quando era tudo parte de uma grande brincadeira e o leite chegava à minha boca todos os dias. Se eu soubesse que aquela era apenas uma pequena encenação, meu estômago embrulharia e eu vomitaria aquele leite, dia após dia.
Descobri o que significa o abuso. A opressão que te deixa com um sentido de impotência inimaginável; aquilo começou a me enlouquecer. Apanhando dia após dia, sofrendo como um messias mal-interpretado e servindo como solução para sanar raivas incontroláveis.
Vendo por outro lado, a coisa até que não parece tão ruim. Com a responsável por esses pecados amarrada em uma cadeira em minha frente, incapaz de se mover, de falar... De implorar por perdão em minha frente, não parece tão ruim.
O fogo consumia os móveis ao meu redor. Quadros com sorrisos falsos desapareciam em meio às cinzas homogêneas, sofás que não me proporcionam boa lembrança desmontavam em uma morte lenta e quieta.
Em minha mão, o largo bastão pulsava e pedia para ser útil. Para não terminar tudo muito rápido, apenas golpeei a barriga saliente. Ela gemeu de dor. Acredito que, se pudesse, teria gritado como se tivesse visto o próprio demônio.
Eu me sentia como o próprio demônio.
E fechei a porta do quarto pensando sê-lo... Deixando a minha missão cumprida para trás.
Mal sabia eu, que o demônio também podia ser tragado pelas chamas...

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Nunca escute os mais velhos

Quando você é criança, sempre há aquelas reuniões chatas de família onde te perguntam: "O que você quer ser quando crescer?". Na maioria das vezes, eles esperam uma resposta engraçada ou clichê, como "Quero ser jogador de futebol!" ou "Quero ser piloto de avião!".
Depois que você revela que quer ser um craque da bola, famoso e cheio de dinheiro, eles vêm com um papo de que você tem que estudar, estudar para ser alguém importante, estudar para ser um médico que salva muitas vidas, estudar para ser um advogado que ganha muito dinheiro, estudar para ser um empresário respeitado.
Comigo também foi assim. Eu queria ser um jogador, mas meu sonho foi despedaçado ao som daquela palavra: "Estudo". Quis também ser um piloto, mas meu sonho foi despedaçado ao som da palavra "Perigo".
Sem saídas, fui atrás do que me disseram para fazer.
Estudei. Fui sempre o melhor da classe, porque sempre fui cobrado para isso. Nunca tive amigos, pois eles são más influências, e me tiram do caminho do sucesso quando têm a oportunidade. Nunca saí para me divertir, porque meus pais disseram que, enquanto eu me divertia, os outros estudavam e se dedicavam. Eu poderia me divertir depois da faculdade. Eu poderia entender porque me diziam tudo isso. Depois da faculdade. Depois da faculdade.
E então me formei médico. Fui tratado com respeito. Todos pareciam tão simpáticos comigo. Eu me sentia feliz. Era daquilo que falavam "depois da faculdade", então.
Até que, numa bela noite de Setembro, recebi um garoto na sala de cirurgia.
"Eu vou sair vivo daqui, né?" ele perguntou, entristecido. Eu não esqueceria daqueles olhos castanhos nem se fosse viver mil anos.
Respondi que tudo dependia da cirurgia. Que íamos fazer o máximo possível para ele sobreviver, mas eu não sabia ao certo.
"Sabe, quero ser escritor." disse ele, e abafei um risinho. "Ué, por que tá rindo?"
E eu disse a ele tudo aquilo que meus pais falaram quando eu era criança. Ele precisava estudar e sonhar mais alto. Ele devia ser um médico, ou um advogado, ou um empresário, ou um cientista. Ele precisava esquecer esses pensamentos de criança.
Quando eu terminei de falar, ele apenas riu.
"Não, eu quero ser escritor. Ser médico seria chato."
E começou a falar de seus planos a longo prazo. Queria lançar um romance que seria lido por milhares de pessoas. Escreveria uma continuação e seu livro viraria um filme famoso. E ele seria reconhecido por onde passasse, além de que poderia assistir sua própria história com atores famosos. Não é legal?
O anestesista mandou-o contar de zero a dez, e o garoto apagou. Mas eu não conseguia parar de pensar no que ele dissera. Por que eu desisti de meus sonhos com tanta facilidade? O problema era comigo, afinal?
Cometi um erro. O coração do menino parou, e apesar dos esforços da equipe, não consegui reanimá-lo. Ele estava morto por causa da minha distração. Os pais me processaram, foi provado que errei, perdi meu emprego. Quando meu dinheiro acabou, arrumei as malas com o que restava e fui até a casa de meus pais.
Toquei a campainha uma vez. Duas. Três. Quando minha mãe abriu a porta, meu sorriso se alargou até as orelhas. A cara dela demonstrava repulsa.
Perguntei se ela não lembrava de mim, o filho dela. Abri os braços para abraçá-la, e ela me afastou com a mão.
"Você não é meu filho.", ela disse.
E bateu a porta.
Sem dinheiro, fui morar nas ruas. Me senti cada vez mais covarde. Aquela expressão de minha mãe, de repulsa e nojo, se tornava mais frequente, estampada no rosto de milhares de desconhecidos. Eu conseguia minhas raras refeições com um pouco do dinheiro suado de pessoas que nunca conheci. Só conhecia suas carteiras.
Um dia, um velho com uma garrafa de vodka veio falar comigo. Estávamos ambos na pior, só que eu estava na merda a menos tempo. Quando ele me viu, começou a rir. E eu lembrei do menino, aquele que queria ser escritor.
"Você parece um covarde, assim como eu."
Assenti, passando a mão por meu terno surrado. Era a única roupa que não tinham levado de mim.
"O que você era?"
Médico, respondi.
"Você queria ser médico?"
Acho que não.
"Então por que virou médico?"
Não sei. Meus pais e outros adultos diziam que era o melhor para mim.
"Também me disseram isso, eu virei escritor. E também tô na merda. Quer um gole?"
Sim. Eu quero.

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Tive essa idéia quando pensei na seguinte frase:
"O que é preciso pra ser feliz?"

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Poeta e o Pêndulo

Eu tinha uma vida de ouro. Uma bela esposa, um lindo e pequeno filho.
Deus os tirou de mim. Por isso, O odeio. Por isso, eu O amaldiçôo. E por isso, me entrego a ele.
Eu era um poeta. Minha vida era feliz e gratificante. Eu era o favorito do Rei; descrevia-o em belas palavras, assim como suas jovens moças. Escrevia-o com paixão, pelas palavras e pela vida. Escrevia com vontade. Com vontade de viver.
É como se minhas memórias estivessem cobertas por uma montanha de areia... E para resgatá-las, preciso prender a minha respiração. Para reviver o que era bom, é necessário me sufocar.
Quando a tempestade os tirou de mim, arrancou de mim também as palavras. De favorito do Rei passei a ser um mendigo, apontado na rua, maltratado e repudiado por todos. A verdade não doía, afinal. Eles amavam a minha palavra, e odiavam-me sem ela. Afinal, o que aprendi é que a paixão alheia é gerada por seus feitos, e não pelo seu caráter. Isso parece tão injusto... Tão falso.
As palavras, quando foram embora, levaram minha alma. Tentei resgatá-la de Deus,mas Ele não me ouvia. Ninguém me ouvia. Eu perdera as palavras. Eu perdera meu nome. Eu perdera tudo que me fazia ser o que era.
Não me retiraram de minha casa, nem sequer ameaçavam. Eu não mais existia, era um fantasma de minha própria existência. E as pessoas têm medo de fantasmas. Este, porém, possuía na escrivaninha uma infinidade de folhas em branco, com um ou outro rabisco. As palavras se recusavam a voltar, e me chamavam até elas.
O pêndulo da minha vida, que ia e voltava com a mesma velocidade, começava a parar. Tinha durado o suficiente para dilacerar minha alma. Tinha durado o tempo suficiente para eu mesmo agarrar a lâmina e enfiar em meu próprio coração despedaçado.


Naquela noite de 14 de Abril do ano de 1675, o poeta foi encontrado morto em sua escrivaninha. No meio das páginas manchadas de seu sangue, apenas uma inscrição:
“Salvem-me”.



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Baseado na música The Poet and the Pendulum, de Nightwish.