sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Seta

Poucas pessoas conseguem admirar a beleza de uma cidade destruída pela guerra. Não é algo normal perceber isso, mas é ali que a essência da humanidade realmente se mostra, em sua crueldade pura. Os corpos estirados, em posições impossíveis para os vivos; o sangue que colore as pichações dos muros, os escombros que cobrem uma superfície antes limpa e, por que não, bela. É algo que nos faz refletir sobre a existência de um bem maior, e nos faz pensar em como a humanidade é podre.
Sim, todos nós somos podres de alguma maneira, mas há de se tirar alguma beleza disto. Os sentimentos fortes causados pela destruição e pela perda criam histórias interessantes e trágicas, como a de minha amiga Jasmine.
1
Conheci Jasmine há muito tempo atrás, quando ainda vivíamos na mais profunda paz. Eu era apenas o criado da família, é verdade, mas ela parecia não se importar com isso. Nós brincávamos dia e noite, jogando futebol e nos divertindo com os animais da fazenda. Apesar de ser uma garota, ela nunca se importara com bonecas ou maquiagens de tipo algum. Vivia apenas para se divertir, ali, em seu mundinho.
Lógico que ela também tinha seus deveres, como filha de pais ricos. Tocava violino muito bem, e sempre me dizia o quanto odiava aquilo. Esse ódio era apenas comparável ao que sentia pela escola.
Jasmine era levada por seu pai, todos os dias, para a escola mais cara da cidade. Ali ela tinha de usar saia e camisa social, além de levar livros de todos os tamanhos. Creio que parte do ódio dela pela escola vinha do meu deboche diário.
- Você está parecendo um pingüim!
- Ah, cale a boca. – ela dizia.
E, conforme crescia, odiava ainda mais os estudos. Ouvi dizer que tinham medo dela no colégio onde ela fez o Ensino Médio. Bem, são apenas boatos que nunca foram confirmados.
Crescemos juntos e nossos interesses foram mudando. Não quero dizer que comecei a me interessar por ela como mulher, até porque isso seria além da minha imaginação, e ela riria só de imaginar na hipótese. Éramos apenas grandes amigos e, quase literalmente, inseparáveis. Jasmine, porém, desenvolveu um estranho interesse pela música estrangeira, principalmente americana. Para uma garota que cresceu no meio de bois, vacas e ovelhas, seria mais comum ela se interessar por sertanejo. Claro, eu debochava dela por isso também.
Mas os meus novos interesses eram mais motivo de brincadeira do que os dela. Eu começara a escrever alguns poemas, de vários temas. Sempre que eu estava com um lápis e um papel em mãos, ela se aproximava com um sorriso terrível.
- Me deixa ver, Rico! – dizia ela, sacudindo meus braços com um vigor incontrolável. – Deixa, vai! Só um pouquinho!
Eu sempre caía naquela armadilha, que vinha sempre em conjunto com uma expressão que me dava dó. Quando ela estava em poder dos textos, porém, sua expressão voltava à debochada de sempre, e começava a ler tudo em voz alta, rindo.
Eu odiava aquilo, e odiava pra cacete. Mas sinto um pouco de saudades daquela época, pois a guerra chegou um pouco depois.
2
O pai de Jasmine andava agitado. Praticamente não parava em casa, alegando negócios na cidade, onde passava o dia inteiro. Só voltava na calada da noite. A mãe, Sra. Frida, também andava um pouco nervosa, mas acredito que fosse pela probabilidade de o marido ter uma amante na cidade, hipótese que nunca se confirmou. Pelo contrário, eu o via chegando todas as madrugadas com um sorriso acolhedor de quem realmente se sente bem em casa.
Quando as primeiras bombas vieram, não ficamos muito preocupados, pois não era muito provável que uma fazenda fosse atacada por motivos políticos ou de qualquer outra natureza. As coisas mudaram um pouco quando a cidade começou a ser destruída, bem debaixo dos nossos olhos.
Meus pais andavam com muito medo. Diziam que deus iria salvá-los, que ele nunca desaponta as pessoas de fé, mas eles sequer eram religiosos até a guerra começar. Sentia um pouco de pena deles, porque eu não estava muito preocupado.
Até que a guerra atingiu a minha vida de uma maneira incontrolável.
Jasmine me disse, mais tarde, o irmão dela voltara do exterior e trouxera notícias sobre a guerra para o pai. Ela parecia mesmo bem desequilibrada naquelas dias, como se algo terrível tivesse acontecido na família. Vivia deitada na cama, e quando saía de casa, me falava com medo.
Alguns dias depois, o medo dela se confirmou. Os pais foram assassinados, a sangue frio, dentro de casa. Lembro-me claramente da cena, embora tenha visto de longe: ela gritava, a plenos pulmões, que o irmão era um assassino, e exigia vingança.
Mal sabia eu que a própria Jasmine iria atrás de vingança.
3
O irmão deixara desenhada uma seta apontando para a cidade, segundo ela. A seta era totalmente pintada com sangue.
Ela começou, então, a seguir o irmão por diversas localidades: hotéis, bares, shows, eventos de todo tipo. Sempre seguindo as setas.
- Em todo lugar que eu chegava, sempre havia uma seta pintada com sangue fresco para seguir – disse ela. – Em todo lugar havia sangue fresco e alguma pessoa morta por aquele filho da puta.
Eu continuei vivendo na fazenda com meus pais. A guerra passou, e eu não ouvira muitas notícias mais sobre Jasmine, até que ela voltou à cidade. Era procurada pela polícia, suspeita de assassinatos e por posse ilegal de arma.
Muita coisa se passara, e a principal delas era a guerra. Por isso, a mídia fazia o possível para expor os inimigos da sociedade e tentar recriar um mundo justo depois de todo aquele horror.
Em meio à poeira, ela ressurgiu. Eu a encontrei, por uma obra do destino, mas não tive a coragem de me aproximar. Fiz, portanto, o que era mais seguro naquele momento – a segui.
Quase a perdi, mas encontrei-a a tempo em um hotel. Não parecia muito seguro. Ela se apoiava em uma cadeira de madeira, apontando a arma para a testa do recepcionista, que parecia desesperado. Os outros clientes do hotel haviam subido para seus apartamentos, temendo que algo pudesse acontecer.
- Onde está? – perguntou ela, em um tom impassível. Seus olhos não mostravam nenhum tipo de emoção, nem raiva nem ódio.
- O-o quê? – gaguejou o homem, desesperado.
- A seta, caralho. – ela disse. – Onde está a porra da seta?
- Eu não sei do que está falando, senhorita...
Escondi-me debaixo de uma janela, sem arriscar observar a cena. Jasmine continuava a gritar com o recepcionista, exigindo que lhe mostrassem a seta. Sem nenhuma resposta positiva, ela atirou. Levantei-me a tempo de ver o sangue jorrando da testa do pobre coitado.
Em um impulso, Jasmine levantou um dos tapetes e seu rosto se encheu de satisfação. Ela sussurrou para o vento:
- Oeste.
E saiu em disparada pelo portão. O barulho de sirene só se tornou claro alguns momentos depois.
Isso não importava. Jasmine tinha ido para oeste, e eu não vira nenhuma seta que indicasse para oeste. Ou melhor, eu não vira nenhuma seta.
Sua perseguição ao irmão imaginário durou mais algum tempo, até que ela foi presa e levada para o Hospital Psiquiátrico da capital. Lá, ela me contou todos os detalhes que eu ainda não sabia sobre sua história, mas ainda convicta em seu irmão.
Mais tarde, descobri que a mãe matara o pai de Jasmine. A mulher já estava completamente louca e convicta de que o marido tinha uma amante. Após matá-lo, ela atirou no próprio coração. Um suicídio realmente bem profundo.
Não entendo até hoje a repentina loucura de Jasmine e a invenção de um irmão. Nunca mais a vi. Escrevo agora minhas histórias fictícias, mas sinto que nada vai chegar aos pés daquela criada por minha grande amiga.

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