terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Nervos de fumaça

Aquele tipo de morte me era estranha.
Primeiramente, eu não sabia como tinha morrido. Simplesmente apareci no meu quarto, deitado em minha cama, como faço todos os dias; as descobertas só vieram depois de algum tempo refletindo e assimilando a idéia. Tentei olhar para minhas mãos, mas ali só havia uma fumaça (portanto, disforme) que se movia ao meu comando.
A segunda coisa que descobri foi que eu podia tocar alguns objetos. Apenas alguns, porque eu tinha que fazer um esforço tremendo. Talvez no outro mundo tenha uma escola de Ioga, ou algo do tipo, para podermos nos concentrar melhor.
Depois disso, fiz uma coisa que me arrependi de ter feito.
“Mãe, você tá aí?” gritei, atravessando a porta do meu quarto.
Um prato se quebrou na cozinha, seguido por um grito agudo. Meu pai reclamou na sala, dizendo que minha mãe estava louca e que era para ela começar a superar.
Veja bem, eu nunca gostei muito do meu pai, mas aquilo já era demais. Eu tinha morrido, e ele não sentia absolutamente nada. Nenhum pesar, nenhuma lágrima escorrida, nenhum abatimento. O incrível é que não consegui ficar tão puto assim por isso. Depois de estar morto e acordar em casa em forma de fumaça, nada parecia normal para mim.
A propósito, eu também não fiquei desesperado demais por estar morto. Pode ser que, quando a gente morre, perde os nervos e os sentimentos. Estava indo bem naquela situação, até.
Acredito que a maior surpresa foi saber que minha mãe podia me ouvir. Provavelmente a única pessoa. Foi meio difícil conversar com ela no começo, mas aos poucos ela parou de quebrar pratos e tentou me convencer a seguir em frente.
“Você não pode ficar aqui, meu filho. Você precisa seguir em frente.” Dizia ela, geralmente parada em frente à secadora.
Eu não queria seguir em frente. Esse era o meu único desejo. Se ela pudesse entender minha expressão por trás da fumaça, saberia que minha cara era de desdém quando ela falava essas coisas.
“Não posso, mãe. Ainda tenho coisas a fazer aqui.”
Vaguei pela casa por algum tempo. Minha mãe parecia estar ficando louca, mas eu não queria ir embora. Quando, pela minha surpresa, minha namorada apareceu em minha casa.
Será que eu ainda podia chamá-la de namorada depois de morto? De qualquer forma, não parecia que minha mãe tinha conversado com ela, mas, quando ela chegou, as duas se sentaram juntas e tiveram um longo papo.
Pude ouvir soluços da sala. Não apareci lá para não causar um surto em minha mãe, que já estava com os nervos em frangalhos. Provavelmente ela estava pedindo para minha namorada me convencer a desistir de tudo.
Fiquei até surpreso quando ela apareceu em meu quarto, sem demonstrar qualquer medo.
“Você sabe que eu te amo. Você sempre soube. Agora preciso que você siga em frente, vá viver outra vida ou seja lá o que aconteça depois que você... deixa de existir nesse mundo. Saiba que” aqui ela começou a chorar. “você sempre vai existir pra mim, não importa o que aconteça.”
Eu sabia que ela logo encontraria um novo namorado e eu seria apenas uma lembrança. Aquelas palavras são ditas da boca para a fora na maioria dos casos, e provavelmente ela usaria alguém para curar a solidão e a dor de ter alguém querido debaixo da terra.
Mesmo assim, eu fiquei comovido. Se fumaças pudessem chorar, eu teria chorado.
Me esforcei para pegar uma caneta em minha escrivaninha. Ela logo notou que ela mexera por provável vontade própria, mas continuou sem sentir medo. Naquele momento, eu sabia o que escrever.
“Amo você. Não esqueça. Viva o que não vivi.”
Como morto, não consegui mentir. Eu não queria que ela me esquecesse, por mais que isso fosse fazê-la bem. Será que todos os mortos eram assim?
Será que todos conseguem seguir em frente só se tiverem uma demonstração de amor verdadeiro? Se sim, mal consigo imaginar a quantidade de almas vagando por aí.
Quanto a mim, não consegui sequer dar um abraço na pessoa que amava. Não tive tempo nem para casar, pelo amor dos céus.
E mesmo assim, segui para o desconhecido com o sentimento de um dever cumprido.

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