segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Nunca escute os mais velhos

Quando você é criança, sempre há aquelas reuniões chatas de família onde te perguntam: "O que você quer ser quando crescer?". Na maioria das vezes, eles esperam uma resposta engraçada ou clichê, como "Quero ser jogador de futebol!" ou "Quero ser piloto de avião!".
Depois que você revela que quer ser um craque da bola, famoso e cheio de dinheiro, eles vêm com um papo de que você tem que estudar, estudar para ser alguém importante, estudar para ser um médico que salva muitas vidas, estudar para ser um advogado que ganha muito dinheiro, estudar para ser um empresário respeitado.
Comigo também foi assim. Eu queria ser um jogador, mas meu sonho foi despedaçado ao som daquela palavra: "Estudo". Quis também ser um piloto, mas meu sonho foi despedaçado ao som da palavra "Perigo".
Sem saídas, fui atrás do que me disseram para fazer.
Estudei. Fui sempre o melhor da classe, porque sempre fui cobrado para isso. Nunca tive amigos, pois eles são más influências, e me tiram do caminho do sucesso quando têm a oportunidade. Nunca saí para me divertir, porque meus pais disseram que, enquanto eu me divertia, os outros estudavam e se dedicavam. Eu poderia me divertir depois da faculdade. Eu poderia entender porque me diziam tudo isso. Depois da faculdade. Depois da faculdade.
E então me formei médico. Fui tratado com respeito. Todos pareciam tão simpáticos comigo. Eu me sentia feliz. Era daquilo que falavam "depois da faculdade", então.
Até que, numa bela noite de Setembro, recebi um garoto na sala de cirurgia.
"Eu vou sair vivo daqui, né?" ele perguntou, entristecido. Eu não esqueceria daqueles olhos castanhos nem se fosse viver mil anos.
Respondi que tudo dependia da cirurgia. Que íamos fazer o máximo possível para ele sobreviver, mas eu não sabia ao certo.
"Sabe, quero ser escritor." disse ele, e abafei um risinho. "Ué, por que tá rindo?"
E eu disse a ele tudo aquilo que meus pais falaram quando eu era criança. Ele precisava estudar e sonhar mais alto. Ele devia ser um médico, ou um advogado, ou um empresário, ou um cientista. Ele precisava esquecer esses pensamentos de criança.
Quando eu terminei de falar, ele apenas riu.
"Não, eu quero ser escritor. Ser médico seria chato."
E começou a falar de seus planos a longo prazo. Queria lançar um romance que seria lido por milhares de pessoas. Escreveria uma continuação e seu livro viraria um filme famoso. E ele seria reconhecido por onde passasse, além de que poderia assistir sua própria história com atores famosos. Não é legal?
O anestesista mandou-o contar de zero a dez, e o garoto apagou. Mas eu não conseguia parar de pensar no que ele dissera. Por que eu desisti de meus sonhos com tanta facilidade? O problema era comigo, afinal?
Cometi um erro. O coração do menino parou, e apesar dos esforços da equipe, não consegui reanimá-lo. Ele estava morto por causa da minha distração. Os pais me processaram, foi provado que errei, perdi meu emprego. Quando meu dinheiro acabou, arrumei as malas com o que restava e fui até a casa de meus pais.
Toquei a campainha uma vez. Duas. Três. Quando minha mãe abriu a porta, meu sorriso se alargou até as orelhas. A cara dela demonstrava repulsa.
Perguntei se ela não lembrava de mim, o filho dela. Abri os braços para abraçá-la, e ela me afastou com a mão.
"Você não é meu filho.", ela disse.
E bateu a porta.
Sem dinheiro, fui morar nas ruas. Me senti cada vez mais covarde. Aquela expressão de minha mãe, de repulsa e nojo, se tornava mais frequente, estampada no rosto de milhares de desconhecidos. Eu conseguia minhas raras refeições com um pouco do dinheiro suado de pessoas que nunca conheci. Só conhecia suas carteiras.
Um dia, um velho com uma garrafa de vodka veio falar comigo. Estávamos ambos na pior, só que eu estava na merda a menos tempo. Quando ele me viu, começou a rir. E eu lembrei do menino, aquele que queria ser escritor.
"Você parece um covarde, assim como eu."
Assenti, passando a mão por meu terno surrado. Era a única roupa que não tinham levado de mim.
"O que você era?"
Médico, respondi.
"Você queria ser médico?"
Acho que não.
"Então por que virou médico?"
Não sei. Meus pais e outros adultos diziam que era o melhor para mim.
"Também me disseram isso, eu virei escritor. E também tô na merda. Quer um gole?"
Sim. Eu quero.

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Tive essa idéia quando pensei na seguinte frase:
"O que é preciso pra ser feliz?"

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Poeta e o Pêndulo

Eu tinha uma vida de ouro. Uma bela esposa, um lindo e pequeno filho.
Deus os tirou de mim. Por isso, O odeio. Por isso, eu O amaldiçôo. E por isso, me entrego a ele.
Eu era um poeta. Minha vida era feliz e gratificante. Eu era o favorito do Rei; descrevia-o em belas palavras, assim como suas jovens moças. Escrevia-o com paixão, pelas palavras e pela vida. Escrevia com vontade. Com vontade de viver.
É como se minhas memórias estivessem cobertas por uma montanha de areia... E para resgatá-las, preciso prender a minha respiração. Para reviver o que era bom, é necessário me sufocar.
Quando a tempestade os tirou de mim, arrancou de mim também as palavras. De favorito do Rei passei a ser um mendigo, apontado na rua, maltratado e repudiado por todos. A verdade não doía, afinal. Eles amavam a minha palavra, e odiavam-me sem ela. Afinal, o que aprendi é que a paixão alheia é gerada por seus feitos, e não pelo seu caráter. Isso parece tão injusto... Tão falso.
As palavras, quando foram embora, levaram minha alma. Tentei resgatá-la de Deus,mas Ele não me ouvia. Ninguém me ouvia. Eu perdera as palavras. Eu perdera meu nome. Eu perdera tudo que me fazia ser o que era.
Não me retiraram de minha casa, nem sequer ameaçavam. Eu não mais existia, era um fantasma de minha própria existência. E as pessoas têm medo de fantasmas. Este, porém, possuía na escrivaninha uma infinidade de folhas em branco, com um ou outro rabisco. As palavras se recusavam a voltar, e me chamavam até elas.
O pêndulo da minha vida, que ia e voltava com a mesma velocidade, começava a parar. Tinha durado o suficiente para dilacerar minha alma. Tinha durado o tempo suficiente para eu mesmo agarrar a lâmina e enfiar em meu próprio coração despedaçado.


Naquela noite de 14 de Abril do ano de 1675, o poeta foi encontrado morto em sua escrivaninha. No meio das páginas manchadas de seu sangue, apenas uma inscrição:
“Salvem-me”.



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Baseado na música The Poet and the Pendulum, de Nightwish.