sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Humanidade

Não era uma vez. Sonhos desperdiçados, a vida indo e vindo como um relâmpago que assusta até os mais fortes. Essa é a história do ser humano.

A menina caminhava pela cidade destruída com um olhar inocente. Na verdade, não sentia nada. O vestido branco estava rasgado nas pontas e sujo nas costas. Além disso, a garota estava com uma arma.

A fumaça não parava de subir. O cheiro de sangue pairava no ar e o horizonte estava tingido de vermelho. Eram os sinais de ruínas de uma pequena vila, antes insignificante; agora, inexistente.

Um gato cinza, coberto de fuligem, saiu debaixo dos escombros de uma casa.

“Gatinho! Aqui, gatinho!” disse a garota, sorrindo debilmente. “Vem aqui...”

Não adiantou. O gato eriçou os pêlos e saiu correndo.

Os animais possuem uma vida invejável: se perdem um abrigo, é só procurar outro. Pelo menos, com a maioria deles é isso que acontece. Os seres humanos se apegam a um determinado local, e preferem morrer a mudar. É a triste realidade. O gato caminhou correu pela rua na direção contrária da garota.

Uma explosão. Bem atrás da menina, que ouviu um grito desesperado de felino.

“Gatinho...” murmurou ela, tristonha, e pôs-se a chorar. As lágrimas marcavam-lhe a face suja de poeira. Ajoelhou-se e continuou chorando. No momento, era tudo o que ela podia fazer. Chorar pelo gatinho. E mais nada.

Ela não podia fazer nada.

Levantou-se, deixando no chão a pistola que estava em sua mão. Caminhou de volta para os destroços de sua casa e engatinhou embaixo de uma parede que formava um ângulo de quarenta e cinco graus com o chão. Seu pai estava ali, com metade do corpo esmagada pela parede, que caíra com o impacto da explosão.

“Papai? Sou eu, papai, vou dormir com a mamãe...” disse, sorrindo como uma criança desmiolada. “Quando acordar, chama a gente, tá...?” caminhou até outro pedaço da parede caído no chão, em cima do qual sua mãe estava. Matara-se após ver seu bebê esmagado, abaixo da superfície na qual ela jazia. Ao ver a mãe deitada, com os miolos saindo pela cabeça, a menina sorriu e passou a mão pelo rosto empapado de sangue da mulher.

“Mamãe... Cheguei... o que você vai fazer pro jantar amanhã? Espero que seja algo bem gostoso...” disse a menina, e riu tristonha, aninhando-se ao lado do braço direito, imóvel, da mãe. “Boa noite...”

Aquelas foram suas últimas palavras.

sábado, 4 de agosto de 2007

Icarus

O mundo? Eu sinceramente não sei o que é isso. Sempre vivi preso neste calabouço que é a Vila Subterrânea, sem nenhum contato com o mundo exterior ou coisa parecida. Mas, sinceramente? Eu não ligo.

Existe uma lenda correndo em outras vilas. As pessoas do passado acreditavam em um ser todo-poderoso, capaz de tudo. Aquele que criou o mundo. Sério, eu queria ser capaz de acreditar nisso. Queria ser capaz de olhar para o céu e dizer: “Oh Deus, Todo-Poderoso, dai-me forças para suportar tal mundo idiota” ou coisa parecida. Hoje em dia, não dá nem para olhar diretamente para o céu. Claro, a não ser que você queira perder a visão. Não que isso tenha alguma importância.

Os nossos monitores já conseguiram provar que o tal Deus não existe. Todas aquelas contas e tal. Será que eu realmente ligo para isso? Eu queria viver em um mundo de verdade. Um mundo onde o mistério existe. Um lugar que existe o tal Deus.

Na superfície, um lugar aonde a luz do Sol chegava com muito prazer e coisa e tal, também viviam criaturas lendárias chamadas de “animais”. É tão fascinante pensar na existência de seres vivos que voam! Quem me dera ser capaz de voar. Quem me dera ser capaz de olhar o mundo de Deus pelo menos uma vez.

A ciência de hoje em dia é capaz de criar asas que funcionam com perfeição. As pessoas usam-nas para se deslocar mais rapidamente pelas vilas, já que o espaço é um pouco longo pelos túneis de luz artificial. Eu podia usá-las para subir para a superfície do planeta. E depois de pensar um pouco, vocês já devem saber o que eu fiz. Tirei minhas economias inúteis do cofre e consegui uma asa. Finalmente. Finalmente eu podia voar.

Será que era difícil? Desesperei-me tentando encontrar a saída para o mundo. A saída de minha prisão humana, do mundo dominado pela tecnologia e pela falsidade. Mas, sim. Havia os centros enormes de recebimento de energia solar. E para lá eu me dirigi, desesperado. Homens tentavam me fazer parar, aqueles inúteis de roupas super-protegidas que não tinham coragem de fazer mal a uma mosca. Mas, não. Não eram todos que me perseguiam. Havia um, que me olhava maravilhado e com os olhos cheios de lágrimas.

“Conte-me, garoto. Conte-me a verdade.” Disse. E sorriu, com aqueles olhos de um verde brilhante. Nunca me esqueceria daqueles olhos, os mais humanos que havia visto por toda a vida.

Não havia luz. Continuei subindo, e a luz não vinha. Quando o desespero começava a tomar conta de mim, vi a coisa mais maravilhosa do mundo: O céu. Aquilo que chamavam de estrelas brilhava, com uma intensidade viva, e um majestoso astro prateado comandava-as. Aquela visão me impressionava. Um pouco diferente do que eu imaginava, depois de ter saído do mundo da escuridão. Mas algo realmente belo.

Com coragem, olhei para baixo. Não havia nada. Uma paisagem morta. Nada. Tudo morto. Desesperei-me, e tentei conter as lágrimas. Não dava. Elas vieram, e continuaram vindo, marcando a minha face suja de terra. O que era tudo aquilo? O mundo de Deus?

Aquele ser lendário havia esquecido os homens. Deus esqueceu os homens.

Não. Não esqueceu. Ele está esperando o momento certo para revelar a verdade.

Que verdade? Não existe nenhuma verdade. Os homens destruíram tudo o que nos era mais sagrado.

Eu queria ter visto um mundo vivo. A Terra de verdade. Um lugar que valesse a pena viver. Mas...

O mundo clareou. O astro prateado desapareceu, e deu lugar ao majestoso Sol. A bola de fogo subiu. Continuou subindo, e meus olhos desviaram. Eu ainda esperava ver alguma coisa que valesse uma vida inteira. Um lampejo de vida. “Não olhe”, repetia para mim mesmo. E aquele murmúrio não parava na minha cabeça. “Não olhe”.

“Olhe”. E eu olhei. E vi aquilo... Aquilo, sim! O que chamavam de pássaro, um pássaro voando! Um pássaro de um branco vivo, balançando as asas alguns metros em minha frente, passando em frente ao Sol. Eu vi.

“Conte-me, garoto. Conte-me a verdade.”... A vida existe. Não podemos nos esconder. Não podemos ficar assim. Veja...

Meus olhos se apagaram. Tudo, em uma explosão de luzes, apagou minha visão.

“E agora, o que você vê?”

A vida. Sinto a vida tomando conta de mim, passando em minha frente e indo para o resto do mundo. O mundo não foi esquecido.

O mundo ainda tem esperança. Posso sentir... Posso sentir a luz sorrindo. Posso...

Tudo se apagou.